Num mercado de trabalho em que as mulheres ganham 76% do salário dos homens — 68%, se forem comparados os rendimentos de trabalhadores e trabalhadoras em cargos de chefia —, não é de se estranhar que várias profissionais tenham vontade de se desvencilhar do ambiente corporativo tradicional (saiba mais no gráfico Mais ocupadas, menos remuneradas). Elas têm menos chances de chegar a posições de gestão e de progredir na carreira e contam com pouca compreensão e abertura das empresas para conciliar as atividades laborais com o cuidado doméstico e dos filhos. Assim, um número cada vez maior de mulheres aposta no empreendedorismo, tema ao qual se dedica a última reportagem da série “Empoderamento Feminino”. Há pelo menos 7,3 milhões de empresárias no país, segundo o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae).
Elas representam 31% do total de donos de negócios, mas esse percentual está crescendo: nos últimos 10 anos, o número de empreendedoras aumentou 16%. “As mulheres estão se mexendo e aceitando menos o que é imposto para elas no mercado de trabalho. As novas mães concordam cada vez menos em deixar que outras pessoas criem’ os filhos delas. Por isso, tantas partem para o empreendedorismo”, analisa a consultora financeira Patrícia Lages. Autora dos livros Bolsa blindada, Bolsa blindada 2, Virada financeira e do recém-lançado Lugar de mulher é onde ela quiser, ela observa que, para muitas, o empreendedorismo é uma nova chance de carreira. “É uma solução para a mulher que se viu fora do mundo corporativo — não só a mãe, mas também a que tem a partir de 40 anos e passa a ser considerada velha para o mercado. A saída, às vezes, é criar o próprio ganha-pão”, observa.
Pesquisa da Rede Mulher Empreendedora comprova esse comportamento: uma mãe, casada, de 39 anos forma o perfil mais comum da empresária brasileira (saiba mais no gráfico Quem são elas?). Ana Fontes, fundadora da rede, acrescenta que a quantidade de donas de negócio que são chefes de família (44%) foi uma surpresa. “Além disso, 75% empreendem após a maternidade. E está por trás desse resultado o fato de o ambiente corporativo ser hostil para a mulher com filhos pequenos.
Muitas acreditam que precisam escolher entre ser mãe ou executiva porque as empresas (que são ainda muito masculinas e machistas) não mostram que é possível.” Apesar disso, Ana Fontes chama atenção para a jornada de trabalho das empreendedoras. “A dona de um negócio vai ter mais flexibilidade, mas não mais tempo livre. Boa parte das empresárias trabalha 45 horas por semana.”
A maior parte das empreendedoras do país está nos ramos de serviço — porque é um setor que não exige investimento alto e permite que a mulher use o capital intelectual dela — e comércio — em geral, em estabelecimentos relacionados ao universo dito feminino, como estética. Ana Fontes chama atenção para a falta de controle financeiro de boa parte dos negócios femininos. “A maioria delas delega as contas a outra pessoa: sócio, funcionário ou marido. Elas acham que isso não é para elas — afinal, historicamente, as mulheres nunca integraram o ambiente do dinheiro”, afirma.
Progresso em igualdade
A consultora financeira Patrícia Lages espera que a presença de mais mulheres encabeçando organizações possa produzir uma onda de mudanças para mitigar as desigualdades de gênero. “O empreendedorismo feminino é um caminho para mudar isso, sim.” Segundo Ana Fontes, fundadora da Rede Mulher Empreendedora, quanto mais proprietárias estiverem à frente das organizações, menos machista deve se tornar o mercado de trabalho. “Tenho certeza de que isso pode gerar um resultado de grande efeito”, define.
Já Lyana Bittencourt, diretora executiva da consultoria empresarial Grupo Bittencourt, não acredita que essa seja a solução para reverter exclusões no espaço laboral. “Mulheres em cargos de liderança não significam erradicação da desigualdade de gênero em ambientes corporativos. Muitas pessoas replicam atitudes machistas sem perceber, porque é uma atitude inerente à cultura”, diz a administradora com MBA executivo internacional. “O passo para mudar essa situação na sociedade está na educação, dentro dos lares e das escolas. Desde o início da formação do cidadão, ele deve entender que todos são iguais, independentemente de raça, sexo, credo ou qualquer outro aspecto”, defende Lyana, nomeada, em 2013, embaixadora brasileira da International Franchise Association (IFA).
Dicas para abrir o próprio negócio
» Busque ajuda: filie-se a alguma rede de empreendedoras, busque capacitação e uma mentora, esteja próxima de outras empresárias. Conhecendo as experiências de outras, você evita cometer os mesmos erros.
» Seja multiprofissional: começa-se um negócio sozinha ou com pouquíssima ajuda. Você será um pouco advogada, contadora, administradora, carregadora, caixa, faxineira. Quanto mais coisas você souber fazer — ainda que seja para delegar tarefas —, melhor. Esteja preparada para trabalhar muito.
» Cuide das finanças: todo negócio é feito para dar lucro, então isso não pode ser menosprezado. Não adianta trabalhar muito e não controlar as contas. Mas não espere que você abra uma empresa hoje e, no mesmo mês, pague as contas com os rendimentos dela: isso pode demorar.
Fontes: Patrícia Lages e Ana Fontes
Seu ambiente de trabalho é machista?
Fique atenta a esses indícios:
» Esforço: as mulheres têm que se esforçar muito mais para conquistar seu lugar e “provar” a capacidade de produzir e principalmente de liderar.
» Aparência: as mulheres são mais julgas pelas roupas que usam, pela forma de se cuidar e pela postura.
» Gravidez: um momento de realização para boa parte das mulheres se torna um pesadelo para algumas quando se refere à atitude de empresa.
» Mansplaining (“explicações masculinas”): elas ouvem explicações óbvias como se não entendessem de um tema, mesmo sendo especialistas nele.
» Diferença salarial: mulheres ainda têm salários inferiores.
Fonte: Lyana Bittencourt
Colaborou Ana Luiza Vinhote, estagiária sob supervisão de
Ana Paula Lisboa Acesse um teste para saber se você
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Histórias de empreendedoras euestudante
Quero independência
Rosana Alves de Souza, 36 anos, é microempreendedora individual em parceria com a mãe dela, Evanilde Alves de Souza, 58 (em pé, na foto). Rosana foi gerente comercial e representante de uma importadora de equipamentos de segurança e resolveu sair da função para ter mais tempo com a filha, Daniela, 9. “Ela estava crescendo, e eu não estava acompanhando. Foi assim que, em 24 horas, decidi largar tudo para começar algo novo”, lembra Rosana. “Disseram que eu era doida porque eu era muito bem remunerada.” Rosana postou num grupo de mães no Facebook um anúncio dizendo que estava fazendo bolos caseiros sob encomenda.
Em uma semana, recebeu 30 pedidos.
“Fiquei desesperada e chamei minha mãe para ajudar”, conta. Há quatro anos, elas mantém a microempresa De mãe para filha — Artesanatos e delícias (saiba mais em goo.gl/evQYzc), por meio da qual vendem bolos, doces, lembrancinhas para festas e outros itens sob encomenda. “Eu não ganho o que ganhava antes, mas não me arrependo. A relação que tenho com minha filha não tem preço. Não quer dizer que trabalho menos, mas consigo me planejar”, diz ela, que ainda se divide entre almoço e cuidados domésticos. “Eu nunca tinha pensado em ter uma empresa. Tem dia que trabalhamos 10 horas por dia, mas vale a pena”, conta Evanilde.
Realização profissional
Após uma viagem ao Chile, Kézia Pimentel, 47 anos, conheceu uma técnica de costura chamada feltragem, feita com lã de ovelha. “Depois que voltei para o Brasil, quis aprender, mas só foi possível conseguir isso e a matéria-prima em São Paulo, por isso decidi investir nessa área”, lembra. Após três anos de pesquisa e planejamento, Kézia, que é casada e mãe de uma filha de 23 anos, abriu a Novelaria, loja localizada no Pátio Brasil, que vende materiais de costura e oferece cursos nessa área. O negócio começou a funcionar há quase três meses. “Valeu a pena esperar esse tempo para abrir a fim de não fazer dívidas. Está no começo e ainda estou caminhando para colher os frutos”, afirma.
Formada em turismo e gastronomia pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), ela tem também, há seis anos, um estande botânico, que vende artesanatos, itens de paisagismo e produtos gourmet, localizada em uma loja colaborativa no mesmo shopping. Para o futuro, ela pensa em se capacitar mais e até abrir um negócio no exterior. “Sabemos que o mercado está saturado, por isso sempre temos que estar nos atualizando e buscando coisas novas”, afirma ela, que conta com uma faxineira, mas toma conta sozinha de outros afazeres domésticos em casa.
Fonte: Correio Braziliense